Busca

Privatização do Mercado dobra o aluguel, muda perfil das bancas e gera insatisfação

Privatização duplicou o valor dos alugueis e atraiu de atacadistas a vendedores de capinha de celular; comerciantes reclamam da falta de reforma e modernização exigidas em contrato

João Maurício da Rosa (Portal Porque)
mercadao
  • Inaugurado em 1938 para fomentar cadeia produtiva da roça, privatização muda o foco do Mercadão. Foto- Zaqueu Gomes
  • Loja de ervas medicinais pioneira na região de Sorocaba inaugurada junto com o Mercado por Zé Franco. Foto- JMR
  • Produtos alimentícios ainda atraem donas de casa e cozinheiros profissionais e diletantes. Foto- JMR
  • Barbearia de 1938, talvez a mais antiga de Sorocaba em atividade, tocada por irmãos herdeiros. Foto- JMR
  • Produtos chineses ocupam espaço de grande porte desde a administração anterior. Foto- JMR
  • Reis pesa a fressura, conjunto de vísceras suínas para elaboração do sarapatel, iguaria nordestina. Foto-JMR
  • José Antônio Alquezar, da Donna Paca, negócio de ervas medicinais e aromáticas herdados de sua avó Paca, apelido de Francisca em espanhol. Foto- JMR
  • Carlinhos, presidente da OSMS, que administra o Mercado após privatização. Foto- JMR

O Lambreta, uma das maiores empresas atacadistas de doces industrializados de Sorocaba, atravessou a rua Francisco Scarpa, onde está sua matriz, para instalar uma filial em boxe no interior do Mercado Municipal de Sorocaba, o popular Mercadão. Inaugurado pelo prefeito Alcino Oliveira Rosa, em 1938, seu objetivo era fomentar a cadeia produtiva da roça, como era então chamada a zona rural da região. Mas, desde sua entrega para a iniciativa privada, em setembro passado, o Mercadão sinaliza para uma mudança de segmento e já admite mercadorias importadas, loja de capinhas de celular e oficina de games.

A guinada é o primeiro reflexo da tendência de privatização do espaço público imposta pelo prefeito Rodrigo Manga (Republicanos). A Prefeitura entregou o Mercadão para uma organização social, em setembro passado. Nove meses depois, seis permissionários de boxes no local reclamam que nenhuma das obras exigidas no contrato de concessão foram executadas, apesar do aluguel ter dobrado de valor, passando de R$ 70 para R$ 140 o metro quadrado, mais taxa de condomínio.

A administração do Mercadão está sob responsabilidade da OSMS (Organização Social Mercadores de Sorocaba) nova razão social adotada pela Associação dos Mercadores de Sorocaba, única entidade que apareceu para disputar processo licitatório para a concessão do empreendimento.

As organizações sociais sem fins lucrativos são um segmento de entidade jurídica bastante difundido pela política privatista de Manga nas unidades de saúde e nas escolas e creches municipais. No caso do Mercadão, porém, quem venceu a licitação para assumir sua administração foram os próprios comerciantes permissionários de seus 54 boxes.

A diferença é que, ao contrário dos gestores de unidades de saúde e educação, estes têm rostos e são conhecidos pelos nomes nos boxes onde atendem pessoalmente. E deixam claro que nem todos estão aprovando o modelo de gestão da OSMS.

“Já foi quase uma gestação de nove meses e ainda não saiu nenhuma criança”, disparou um permissionário descontente. A bronca começa pelo reajuste do valor dos alugueis, que dobraram, e com a falta de execução de obras obrigatórias previstas no contrato de concessão. O contrato prevê também ações de marketing para atrair mais público e consolidar o espaço como atração turística de Sorocaba.

À frente do desafio está o comerciante João Carlos Padovani Cortez, o popular Carlinhos, presidente da OSMS. Ele é herdeiro do comerciante Henrique Benedicto Cortez, que abriu bar e lanchonete em 1938, logo na inauguração do Mercadão. Outros três comerciantes ouvidos pelo Portal Porque são a segunda e terceira geração de permissionários de boxes.

Ao lado da lanchonete de Carlinhos está a loja de ervas medicinais A Franco, de Antônio Franco que vem a ser herdeiro do popular Zé Franco, patrono da Orquestra de Violas de Sorocaba, que leva o seu nome por todo o Brasil participando de festivais. Ambas as casas têm entrada pela rua Padre Luiz. Na outra ponta, fazendo esquina com a rua Francisco Matarazzo, está a casa Donna Paca, da espanhola Francisca Alquezar, hoje sob comando de seu neto José Antônio. Seu boxe tem o formato de L, um dos maiores do Mercadão.

Diante da mudança da pessoa jurídica que comanda o condomínio, Franco e Alquezar têm dúvidas sobre como será feita a sucessão das permissões em caso de morte dos titulares. “Quando era um patrimônio público, as permissões eram obtidas através de processo licitatório, com vitória da melhor proposta, com vantagem para o herdeiro em caso de empate e uma série de artimanhas processuais que garantiam a manutenção do controle pela família.  A mais usada era a licitação às escondidas, sem publicidade e, portanto, sem concorrente”, contou um permissionário.

Atualmente a OSMS pode alugar para qualquer empreendimento que aceite suas condições, atuando como uma imobiliária. E como presidente de uma entidade privada, Carlinhos sequer é obrigado a revelar o valor dos contratos. De acordo com os termos de concessão, a OSMS tem todo direito, mas também tem deveres de realizar obras de ampliação, conservação, manutenção e reformas.

Além disso, o administrador deve garantir as atividades em geral e dar viabilidade para a exploração econômica; ter como finalidade exclusiva a exploração e gestão do local; e regularizar a ocupação dos boxes, sempre levando em consideração a atividade à qual se destina. Também está obrigada contratualmente a incentivar atividades turísticas como forma de atrair novos clientes.

Mas, segundo Franco nada disso está acontecendo. Ele disse que já foi, junto com sua filha, com os dois pés no peito de Carlinhos para cobrar serviços. “Fomos de voadora”, comentou, em modo de brincadeira, sobre como foi reivindicar a manutenção das calhas entupidas e que teria causado um gotejamento sobre seu estoque de ervas medicinais nas últimas chuvas.

“Então, até agora não está sendo feito nada de melhoria. Mas o pessoal está adquirindo as bancas agora que não tem mais licitação. Porque agora é o valor do aluguel, né? Não sei como é que é o sistema para você pegar a banca, né? Até um dia eu perguntei para o advogado, os caras estão mais perdidos do que cachorro de mudança”, afirmou Franco, levantando dúvidas quanto à transparência das ações do presidente.

“Nem Jesus agradou todo mundo”, responde Carlinhos. “Queriam ficar pagando aluguel de R$ 300 em área nobre! Hoje estamos com todos os boxes ocupados, instalamos novos climatizadores e estamos com um calendário de obras a serem executadas”, argumenta. Segundo ele, a administração ainda está providenciando o AVCB (auto de vistoria do Corpo de Bombeiros), documento sem o qual o Mercadão nem poderia estar aberto ao público.

Mesmo assim, Carlinhos informa que, seguindo ao contrato, todo mês promove atividades culturais no Mercadão, tendo já ocorrido comemoração do Carnaval, Páscoa, dia das mães e em breve terá o dia dos namorados e as festas juninas. Sobre reparação de problemas, ele diz: “Os permissionários pensam que eu tenho que ficar fazendo ronda por aí vendo se tem luz queimada, eu não sou fiscal, sou presidente. Eles que me procurem quando virem coisa errada”.

Para o barbeiro Hudson de Paula, porém, ninguém precisa chamar a atenção do Carlinhos para os defeitos do Mercadão porque ele conhece o prédio como poucos. “A culpa não é dele (Carlinhos), a culpa é do entorno, pessoas que o rodeiam e que não deixam que isso aconteça. Quando a gente tem uma diretoria, a gente não manda sozinho, né?”, argumenta Hudson.

Anderson, seu irmão primogênito, prefere falar sobre a barbearia ao invés de criticar a administração. “Esta deve ser a barbearia mais antiga de Sorocaba ainda em funcionamento. Conserva clientes que nunca cortaram em outro local, a maior parte com mais de 60 anos de idade”, descreve, mas não perde a chance de criticar o súbito aumento do valor do aluguel, que somando ao condomínio, saltou de R$ 450 para R$ 930.

A ocupação de boxes vagos por segmentos de comércio fora do padrão, como artigos da China, já vinha acontecendo há anos, mesmo com a administração sob controle municipal. Atualmente, sob gestão privada, o Mercadão adicionou uma loja de capas de celulares, uma oficina de assistência técnica de games e breve receberá a Lambreta.

Os defensores da novidade alegam que boxes desocupados afugentam a freguesia, enquanto uma loja do porte da Lambreta tende a atraí-los. É o que esperam os açougueiros Helder Reis e Wilson Godoy, que estão ao lado da futura doceria. Reis, administra o açougue Santo Antônio, estabelecido no Mercadão em 1953. Atualmente comercializa cortes especiais e miúdos de porco para a elaboração do sarapatel. Um kit para a elaboração do sarapatel é chamado de fressura e contém todas as vísceras necessárias, como coração, fígado, rins e tripas.

De acordo com Wilson Godoy, o que diferencia as carnes do Mercadão das vendidas nos supermercados é a data da desossa. “Nós só trabalhamos com carne fresca, não temos local para armazenar congelados. Então desossamos carne todo dia”, informa.

Para José Antônio, da Donna Paca, falta o que sempre faltou no Mercadão. “Acho que é uma limpeza, uma organização melhor aqui dentro. Também uma organização aí do lado de fora, sabe? E agora, lógico, estão ocupando todos os pontos vazios que tinha. Não poderia estar vazio, né? Mas, ao menos, eu acho que isso, essa culpa não seria nem na administração de agora. A culpa da administração atrás, apesar dessa associação também ser as mesmas lá de trás. Entendeu?”, comentou José Antônio.

Segundo o empresário, apesar de toda movimentação em torno da privatização, o Mercadão continua sendo um ponto de referência gastronômica para chefes de cozinha profissionais formados nas escolas de gastronomia de Sorocaba e para cozinheiros diletantes, que encontram ali uma rica variedade de peixes, carnes, queijos, defumados e embutidos, além de todos os tipos de tempero.

Moderador, José Antônio defende que os permissionários deixem de lado as divergências e busquem um entendimento para que o Mercadão mantenha a sua essência. “É um patrimônio histórico,  tombado, então é um parte importante da identidade de Sorocaba”, argumenta.

mais
sobre
associação carlinhos dona pacca gastronomia lambreta Manga mercado público mercadores osms privatização zé franco
LEIA
+