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Decisão do STF não é um ‘libera geral’ e ainda há sanções para o uso da maconha

Jônatas Rosa (Portal Porque)

A decisão do Supremo Tribunal Federal em descriminalizar o porte de maconha no Brasil foi comemorada desde a tarde desta terça-feira (25). Nas redes sociais, muitos entenderam o posicionamento do STF como uma liberação para o uso indiscriminado da droga.

No entanto, a decisão dos ministros do Supremo apenas considera que o porte da maconha deixa de ser uma questão criminal para ser tratada no âmbito administrativo. Na prática, significa que quem for pego portando até 40 gramas da droga deve ser tratado como usuário e não como traficante.

Dessa forma, usuários de drogas não devem ser punidos com a prisão, mas ainda são alvo de inquérito policial e processos judiciais que buscam o cumprimento das penas alternativas.

O advogado Paulo Henrique Soranz explica mais sobre o assunto; confira a entrevista:

PQ: O que a decisão do STF significa na prática?
PH: Significa que a gente finalmente consegue avançar para um cenário, para começar a tentar separar o que é o usuário do que é o traficante. Tentar começar a tratar a questão do uso como uma questão de saúde pública e não como uma questão de segurança pública. Na prática, o uso e o consumo continuam sendo considerados ilícitos. A diferença é que o porte [da maconha], por si só, deixa de ser apenável. Não tem uma pena criminal por conta do porte. O entendimento geral é que o porte é uma questão inadequada, é de saúde pública, mas não um crime, né? Então existirão sanções, como a lei de drogas já prevê, mas sanções administrativas, não mais prisão.

PQ: Isso, na prática, não significa que as pessoas podem sair por aí portando a maconha ou usar em qualquer lugar? Elas ainda podem ser paradas pela polícia, serem revistadas e até levadas para delegacia?
PH: Exatamente, não vai ser preso, não vai responder criminalmente por aquilo, mas como eu disse, continua havendo sanções administrativas. Então a mudança, ela é uma mudança muito mais de conceito e de colocar em prática o que já deveria estar a acontecer há bastante tempo.

Em termos bem práticos, significa uma certa tolerância com o fato de haver o porte. Mas não considerar quem porta uma pequena porção de maconha como sendo o tráfico. Esse é o grande problema no Brasil, se enquadrava como tráfico qualquer jovem, em geral de periferia e negro, que está com uma pequena quantidade de entorpecente, se enquadrava como traficante.

Já uma pessoa de classe média, branca e numa condição de vida econômica melhor, se enquadra como usuário. Então era muito subjetivo. Agora, o STF vai, na conclusão do julgamento, estabelecer diretrizes mínimas, condições mínimas para se separar o que é tráfico do que é consumo?

PQ: Muita gente comemorou e não entendeu muito bem o que significa a decisão do STF. Qual a diferença entre descriminalizar e legalizar?
PH: Legalizar significa permitir o uso, o comércio, o porte, assim como é bebida alcoólica, por exemplo. Bebida alcoólica é uma droga legalizada no Brasil. Toda essa cadeia de produção, consumo e venda está garantida, está protegida por lei. Legalizar é o uso da maconha, por exemplo, seria isso.

Alguns países avançam na legalização, outros países avançam na tolerância e separar o que questão de segurança pública do que a questão saúde pública.

O Brasil está nesse caminho, de separar o que é questão de segurança pública do que é de saúde pública, mas não está no caminho da legalização.

PQ: Esses critérios definidos pelo STF para separar usuário do traficante ainda deixa nas mãos da forma policial definir quem é quem? Há um perigo nesse sentido?
PH: Há um perigo. É importante que os critérios que sejam estabelecidos neste julgamento sejam os mais objetivos possível. O ministro Dias Toffoli, no voto dele, chega a recomendar, inclusive, para que determinados ministérios e o próprio Congresso se debrucem sobre o tema para estabelecer esses critérios objetivos. Porque, sem critérios objetivos, fica na mão da polícia, que é o que já acontece hoje.

E aí a gente vai rever várias situações que nós ouvimos, lemos e assistimos, daquele jovem de periferia que foi preso com uma pequena porção e passou anos preso enquadrado como traficante. E daquele filho de alguém com um cargo importante ou, por uma condição muito mais favorável a se considerar tráfico. Porque o tráfico não é só você ter o entorpecente em mãos, mas também ter algum indício de que você está comercializando aquilo. Então, dinheiro junto, você está num ponto de distribuição, na está armado. É uma conjuntura que se forma para se caracterizar aquilo como tráfico e não só ter a droga em mãos.

Mas hoje os critérios são muito subjetivos. Então, a polícia, a forma que o enquadramento da polícia acontece, acaba caminhando e levando o caso é porque ele vai ser no julgamento. O que a gente espera é que os critérios agora sejam postos de forma muito objetiva para não deixar que essa questão, essa leitura seja feita pela força policial. Não é ela a adequada para fazer isso.

PQ: No caso do uso medicinal da maconha, isso ainda mais continuar exigindo receita médica para o porte?
PH: No caso da maconha, tem uma essa particularidade. Porque nós temos um monte de drogas que são de uso controlado. Por exemplo, vários remédios que têm anfetamina na sua composição e o uso é controlado com receita médica, com prescrição, com acompanhamento médico, ele é permitido.

Brasil da mesma maneira o canabidiol, por exemplo. A maconha medicinal, ela segue da mesma maneira: é liberada no Brasil desde que com autorização da Anvisa, com receita médica, com acompanhamento e tudo mais.

É um problema ainda porque você tem o uso controlado, mas você não tem a produção controlada. Então, o que torna, inclusive, os medicamentos mais caros, acesso ao medicamento muito mais difícil e não é acessível para a maior parte da população. É uma questão que ainda precisa ser enfrentada.

PQ: Agora, o Congresso já contra-atacou essa decisão do STF. O Senado aprovou e segue pelo mesmo caminho na Câmara dos Deputados a criminalização do porte de qualquer quantidade de droga. Esse debate ainda vai longe, certo?
PH: Infelizmente a gente vive um momento delicado na política no Brasil. O povo brasileiro, nas questões de valor, ele é um povo conservador, que tem suas questões de racismo, dos preconceitos, que muitas vezes passaram períodos velados, mas que sempre existiram e agora estão mais evidentes. E isso se reflete no Congresso.
Nós temos um Congresso de conservadorismo de direita que, na política pública, eles sempre defenderam uma questão de uma economia liberal, de um Estado menor e isso fracassou. Fracassou terrivelmente no Brasil, com Bolsonaro. Fracassou terrivelmente em outros países, está fracassando na Argentina.

E de onde eles sacam alguma possibilidade de enfrentar outro modelo que a gente defende, um modelo de quem defenda o progressista de esquerda, por exemplo? No campo dos costumes. E quem paga por isso é o povo.
Eles sacam lá de uma gaveta qualquer a história de que a vítima do estupro tem que ser criminalizada com uma pena maior do que o estuprador. Enfim, enfrenta um aborto legal como uma coisa absolutamente distante do que é a vida real.

Da mesma maneira a questão da descriminalização do porte da maconha. A gente sabe que os presídios estão superlotados. Em grande parte da ocupação desses presídios é por quem não deveria estar lá, porque não era traficante, era usuário que foi enquadrado de forma inadequada. A gente sabe que quem vai para o sistema carcerário, em geral, são pobres, periféricos e pretos do Brasil.

A gente sabe que a questão do sustento do tráfico e criminalidade também tem que ser enfrentada. E a descriminalização, por exemplo, da maconha, poderia ajudar a quebrar essa rede econômica do crime.

Mas nada disso importa porque eles sacam da gaveta conservadora deles a história de que aquela fantasia de que a maconha é a porta de entrada para outras drogas e tal. E aí conseguem fazer um debate fácil, que vai passando pelo Congresso. O que eles propõem agora é uma mudança constitucional para criminalizar o porte. É uma coisa absurda que os países mais conservadores do mundo tratam dessa questão hoje.

Nos Estados Unidos mesmo, que talvez voltem a eleger um presidente super conservador, a maior parte dos estados tem uso recreativo, não só medicinal, liberado. A maior parte do mundo está discutindo isso de uma outra maneira e o Congresso conservador brasileiro tenta regredir para afrontar o STF, que simplesmente cumpriu o papel dele.
O STF não legislou, não inventou a regra. O STF julgou a interpretação de um artigo da lei de drogas para dizer a abrangência deste artigo.

A gente espera que da mesma maneira como aconteceu um debate sobre o aborto ilegal, a medida que a sociedade se apropriou do tema e viu que era um absurdo, o Congresso recuou. Da mesma maneira, o que a gente espera é que quando esse tema for colocado em pauta a pauta da maneira real como é, que novamente haja pressão, que o Congresso também recue.

PQ: Paulo, mesmo com a decisão do STF, as pessoas precisam tomar cuidado com o porte da maconha?
PH: Na verdade, ontem os ministros, depois de proferirem os votos, vários deles, inclusive, fizeram questão de reforçar, nós não estávamos liberando nada. Consumo de maconha em área pública continua sendo crime porque o consumo continua sendo crime. O porte é que não. Então, ainda com cuidado com essas questões, não entender que houve um libera geral, porque isso não aconteceu. Mas que a gente continue tratando com seriedade, essa é uma questão que precisa ser cuidada com seriedade, de saúde pública, de saber as consequências disso, do que a gente está tratando.

Mas saber também dos benefícios para a sociedade e para a questão medicinal, para a questão, inclusive, de combate ao tráfico e que se evite a superpopulação carcerária. A gente está vivendo um momento que pode ser de transição, uma boa transição, se tudo correr bem.

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